Estava eu, belo e formoso numa tranquila tarde de segunda-feira trabalhando com meu estoque, arrumando prateleiras, mudando umas ferramentas daquiprali pra ver se mexia um pouco nas vendas, quando um senhor nos seus sessenta se aproxima com um saco de supermecado na mão.
‘Tenho uma furadeira aqui, usei uma vez e quebrou.’
‘Tudo bem, quando o senhor comprou a furadeira?’
‘Há mais ou menos um ano atrás.’Abro o saco e dou uma olhada nas furadeiras, que parecem bem usadas. A furadeira tem um ano e foi usada uma vez? Estranho, penso eu.
‘O senhor tem o recibo?’ Enquanto isso vou me encaminhando pro meu caixa, onde tenho o telefone.
‘Não. Mas as ferramentas Craftsman não tem garantia por toda a vida?’[As ferramentas Craftsman, marca da Sears, têm garantia por toda a vida, se forem ferramentas de mão, tipo chave de fenda, essas coisas. Voces não imaginam como atendo caras que voltam com ferramentas de 15, 20 anos atrás, mostram pra mim, eu digo que se tivermos em estoque podemos trocar e a troca é feita em 2 minutos, o cara sai com uma ferramenta nova. Ferramentas elétricas tem garantia de 1 ou 2 anos, dependendo da ferramenta.]
‘As ferramentas elétricas têm garantia limitada, posso checar para o senhor qual a garantia da sua ferramenta. De qualquer modo, depois de um ano, o senhor teria que falar direto com o departamento de serviços e peças. Vou ligar pro departamento de reparos pra confirmar.’Enquanto atendo ao senhor, vejo chegando um cara, quadrado de grande, cabelo branco, barba branca, olhos esbugalhados, uma mulher ao lado dele, pequena, franzina, com duas furadeiras na mão. Eu ligando pro tal departamento e o cara das duas furadeiras joga as duas no balcão e diz, em voz alta:
‘Isso aqui é uma porcaria, não quero mais isso.’ Myla, a menina do meu time ficou menor do que já é. Eu explicando o outro caso no telefone, dei o nome do cliente, o número do telefone. A moça me pede pra esperar.
O cara das duas furadeiras continua falando:
‘Comprei essas duas m....s faz dois meses, uso pra trabalhar, não posso ficar sem elas, uma droga e tal e coisa.’ O cara tava bravo, falando duro com a Myla e olha pra mim. Eu no telefone, esperando a moça voltar comento
‘dois meses’, como quem diz
‘nossa, não faz muito tempo’ e o cara olha pra mim bravo, como quem não entendeu e quer briga e eu explico:
‘dois meses, são como novas’.A moça do outro lado do telefone volta, responde com a data da compra e outros detalhes do senhor, como endereço e coisa e tal e diz que a garantia é de um ano e já expirou. Agradeço, desligo e volto ao cliente. E o cara das duas furadeiras não para de falar.
‘Me desculpe, senhor, mas sua ferramenta está fora do prazo de garantia.’
‘Mas eu só usei uma vez!’
‘Desculpe, senhor, a furadeira foi comprada a mais de um ano, não posso fazer nada.’E o senhor olha pra mim, mostra o saco do mercado com a furadeira dentro e joga no lixo. Myla fica chocada e tira a furadeira do lixo. Eu digo a ele que tenha um bom dia e ele se vai.
Agora me volto pro cara das duas furadeiras e como nessas horas ligo o modo
stereo, mantive o tempo todo uma orelha ligada no que ele falava e sabia de toda a estória. Ainda assim e por isso mesmo perguntei como podia ajudá-lo. Ele contou tudo de novo, despejou a raiva que estava das ferramentas em mim, falou, falou, falou, leu meu nome no meu crachá, começou a me chamar pelo nome. E a mulher dele do lado dele, sorrindo o tempo todo. Eu apenas disse:
‘Ok, posso ver seu recibo?’ E perguntei o nome dele. Peter.
Olhei os recibos, verifiquei a data e vi que ele tinha comprado um monte de outras coisas. Perguntei se ele queria trocar as furadeiras por novas. Ele disse que nem pensar, não queria mais aquela porcaria, nunca mais. Então perguntei:
'O que você quer que eu faça, Peter, eu quero ver você feliz.'
‘Eu quero deixar esse lixo aqui e quero um carregador de bateria novo.’
‘Isso vai deixar você feliz, Peter?’
‘É isso que eu quero.’ E a mulher dele ainda sorrindo.
Fui atrás dos dois carregadores que tenho na loja, mostrei pra ele, perguntei qual ele queria. Ofereci o mais caro, o melhor, mas enfim ele queria o mais simples. Tudo bem. Peguei os recibos, passei pelos milhões de passos pra fazer as operações de retorno, troca, etc, peguei o carregador que ele queria, imprimi um novo recibo da mercadoria nova e entreguei tudo pra ele.
‘Aí está, Peter. Obrigado. Voce é sempre bem-vindo nesta loja.’ O cara disse obrigado e saiu, levando o carregador e a mulher a tiracolo.
Peguei as duas furadeiras do Peter, colei as etiquetas de retorno por defeito, levei por depósito. Voltei, peguei a furadeira do senhor e joguei de novo no lixo. Myla olhou pra mim e diz:
‘Cara, você é calmo demais, como agüentou tudo isso?’
‘Isso não é nada, faz parte.’ Dei um suspiro grande, me sentindo esgotado.
‘Mas preciso de um tempo, vou tomar uma água.’ E fui tomar uma água e fiquei uns 5 minutos olhando pela janela, o céu azul, o sol refletindo na neve. Sobrevivi, pensei. Mas me perguntei o que eu estava mesmo fazendo ali.
'Aprendendo, aprendendo...', me disse uma vozinha lá do fundo que nem eu sei quão fundo é...