Tarefa nada fácil escrever sobre o livro da vida. Ou melhor, pode ser muito fácil. O livro da minha vida é esse que estou escrevendo aqui. Sei, até parece! Bom, deixando a modéstia de lado, vamos ao que interessa
Antes de mais nada, é preciso enfrentar a tarefa dificílima de escolher, dentre tantos livros com os quais se cria uma relação intelectualmente afetiva [ou seria uma relação afetivamente intelectual?], aquele que seria “o” livro da vida, o eleito. Eu poderia fazer uma lista dos top 5, ou top 10 ou ainda os 50 livros marcantes da vida.
Foi um exercício interessante mapear mentalmente os livros marcantes da vida, relembrar suas linhas e como minhas histórias se cruzavam com as escritas pelo autor. De fato, descobri que há muito não leio romance e poesias e tenho me concentrado mais na filosofia, que não deixa de ter um sentido de arte ao propor reflexões sobre a vida e inventar conceitos que possam explicá-la.
Então, passei pelos livros de
Calvino, o Italo o
fantástico autor nascido cubano mas na verdade italiano. Qualquer livro dele poderia ser o livro da vida, especialmente
‘Cidades invisíveis’ ou ‘Amores difíceis’. E lembrei-me de
‘O velho e o mar’ de
Hemingway, que tantas vezes reli como se fosse a primeira vez. E retornei ao
‘Tom Sawyer’ de
Mark Twain, leitura da primeira juventude. E ao
Caio Fernando Abreu dos últimos anos de uma juventude já rebelde. Ainda passar por
Machado,
Clarice Lispector,
Dalton Trevisan,
Moacyr Scliar e tantos outros. E recordei das
poesias concretas que foram o inicio de tudo para mim: os irmãos Campos [
Haroldo e
Augusto],
Décio Pignatari e todos os outros. E das poesias de
Bandeira e
Gullar e
Leminski e
Pessoa e de
Ana Cristina César, descoberta tardiamente, para mim, pouco antes de sua morte que me fez chorar.
A partir daí enveredei pelos ensaios e pelas reflexões filosóficas que me levaram a
Octavio Paz e seu ‘O Monogramático’, a
Paul Valéry de ‘Variedades’ e ‘Introdução ao método de Leonardo da Vinci’, aos ‘Mil Platôs’ de
Deleuze e
Guattari, ao
Foucault de ‘As palavras e as coisas’ e ainda ao ‘Bartleby, o escrivão’, de
Hermann Melville. Sim, a literatura encontra a filosofia por diversos caminhos. Contudo, entre esses e tantos outros, há um especial, por uma serie de circunstâncias. Trata-se de ‘A câmera clara’, de
Rolando Barthes. [Barthes nasceu no meso dia que eu!]
Com toda certeza, ‘A câmera clara’ foi o livro a que mais releituras recorri até hoje. É um livro pequeno, de cento e poucas páginas, um pequeno ensaio sobre a fotografia [o titulo em português não traz o subtítulo do original francês: La Chambre Claire: Note sur la photographie]. O exemplar que tenho hoje não é o meu primeiro, comprado em 1987 durante a graduação. Esse que hoje leio e releio foi comprado em 1994, na época em que fazia o mestrado. Já teve que ser encadernado sob pena de perder as páginas todas tão desmilinguido estava. Já não cabem mais notas e observações nos espaços em branco de suas páginas.
Barthes escreveu este ensaio em 1980, logo após a morte de sua mãe, com quem vivia, celibatário, no mínimo, se não homossexual. Entre arrumações do luto, se depara com fotos da mãe que detonam o processo de reflexão sobre a natureza da fotografia. Essa, para mim, é a primeira qualidade do ensaio, o primeiro nó que a ele me prende, é seu detonador, seu gatilho, um fato emocional, emotivo que, não por isso, impede o pensador de tecer suas teias conceituais sobre os fatos e as coisas que o rodeiam. O que me agrada e me admira em Barthes é sua capacidade de pensar sobre as linguagens, todas: a escrita, a pintura, o cinema, a moda, os meios de comunicação, tudo. Nada escapa de seu olhar agudo.
Poderia dizer que o segundo laço que me prende a esse livro é o fato de ter sido o primeiro livro que li que engendra conceitos sobre a imagem. Ele representa uma dupla descoberta: a descoberta da invenção de conceitos e a descoberta da poética da linguagem através da fotografia. [Minha trajetória para chegar às artes visuais, às imagens, foi através da literatura e da poesia concreta. E daí para a semiologia e a semiótica foi um pulo. Quem faz a ponte, nesse percurso, quem me faz ir adiante e mostra o caminho é Barthes]. Por fim, um terceiro motivo é também muito pessoal e, coincidentemente, tem a ver com a morte de meu pai. Em 1994, quando reli o livro com mais maturidade, sua morte era recente.
Há ainda um outro motivo. Foi a partir da câmera clara de Barthes que escrevi meu primeiro artigo. A partir de seus conceitos fundamentais fiz a leitura das fotografias de
Oliviero Toscani, então fotografo e publicitário que fazia as polemicas campanhas da Benetton. E assim como Barthes, a partir de seus conceitos, teci minhas reflexões que me levaram a invenção de um novo conceito a partir do conceito original.
Resumidamente, o que Barthes diz é que a essência da fotografia é seu referente, aquilo que estava em frente à câmera no momento da tomada, do disparo da maquina fotográfica. Quando se contempla uma fotografia o que se vê é aquele instante, aquele momento congelado, no passado. A isso ele chama ‘isto-foi’. Isso ele pensa a partir das fotos que encontra de sua mãe, após a sua morte, na sua ausência consumada. Esse movimento, para mim, é belíssimo. Todo o ensaio de Barthes gira em torno disso e é de uma beleza poética, de uma singeleza e singularidade embasbacantes.
Assim, sobre esse conceito, eu, um jovem estudante de mestrado, arrisco criar um conceito que desse conta das fotos de Toscani. Suas fotos escancaravam as feridas da sociedade no final dos anos 80 e inicio dos 90. Apesar de, na pratica, toda foto remeter ao ‘isto-foi’ a partir de um referente num tempo que sempre é passado, as fotos da Benetton apontavam para uma atualidade que não queria sair de nossa frente, constituindo assim um ‘isto-é’. É um artigo pequeno, curto, mas tem um certo vigor na reflexão. Tanto que arrancou elogios do então professor, bastante rigoroso.
Gostaria de colocar um trecho das palavras de Barthes mas escolher uma passagem é igualmente uma tarefa difícil. São tantas belas passagens, são tantas observações estimulantes, são inúmeras as reflexões que extrapolam a fotografia e o luto de sua mãe, apontando para o papel da mediação da linguagem para a compreensao das coisas do mundo. Ainda assim, transcrevo a seguir um pequeno fragmento:
“Ora, na fotografia, o que eu estabeleço não é apenas a ausência de objeto; é também,simultaneamente e na mesma medida, que esse objeto existiu realmente e esteve lá, onde eu o vejo. É aqui que reside a loucura, porque, até este dia, nenhuma representação podia garantir-me o passado da coisa, a não ser através de circuitos. Mas, com a fotografia, a minha certeza é imediata: ninguém no mundo me pode desmentir. A fotografia torna-se então para mim um meio estranho, uma nova forma de alucinação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo. De certo modo, uma alucinação moderada, modesta, partilhada (por um lado ‘não está lá’, por outro, ‘isso existiu realmente’). Imagem louca, tocada pelo real”. O livro de minha vida é ‘A câmera clara’, pois me fez pensar a vida com outros olhos. Barthes me ensinou a ver e a pensar.