Lobato…Lobato…o meu Lobato? Quem teria sido o meu Lobato? Pergunta difícil, resposta mais ainda. Exige que se puxem os fios da memória, os vários fios, em busca de uma possível resposta. Vai, vai, vai lá longe a memória, nos recônditos da infância distante procurar. Coisas vão voltando, imagens, sensações, trechos de histórias e à medida que vão surgindo e invadindo o espaço presente da mente, aparece uma certeza. Meu Lobato não foi Lobato, Definitivamente. Não. Nunca li Lobato, nada. Folheei algumas vezes um e outro livro, mas ler de verdade, não li nada.
Isso é, no mínimo, curioso, considerando que eu, menino, lia muito, bastante. Não que me faltasse acesso aos livros de Lobato, pelo contrário, eles estavam lá, na estante, junto ao outros. Não que não houvesse o estímulo, as irmãs mais velhas, os primos, os colegas de escola, todos pareciam ler e gostar das histórias de Emília, Pedrinho e Narizinho no Sítio do Pica-pau Amarelo. Porque, então, não li, me parece uma indagação que ficará ainda sem solução, não encontro explicações a contento, falta-me a memória de como isso ocorreu. O fato é que, se na época, dizer não aos livros de Lobato causava estranheza e era de certo modo embaraçoso, ainda hoje, me causa desconforto não ter lido Lobato.
Sua presença é tal na literatura infanto-juvenil brasileira que parece tolo indicar um substituto. Quem poderia tomar seu lugar? Quem poderia ter tido preferência sobre ele? Quem? Quem? Volta, volta, volta aos confins mais remotos das lembranças e entre uma e outra possibilidade a resposta não poderia ser uma só. Meu Lobato foi mais de um, foram alguns, talvez vários. Então, eu tive Lobatos que ajudaram a construir minha paixão pelos livros e pelas letras.
Lembro de alguns Lobatos que me iniciaram na literatura, que me fizeram ter gosto pela leitura. Não sei com qual deles tive contato primeiro, qual foi de fato o livro que abriu passagem para que outros viessem. Isso também pouco importa. Se não foi o Lobato de verdade, também não importa em que ordem esses outros Lobatos foram aparecendo em meu caminho. Mais ainda porque esse contato ocorreu, sem sobra de duvida, na época logo após o letramento, quando as inúmeras possibilidades de arranjos de letras e palavras, deslumbra por sua infinitude de combinações que resultam em histórias.
Lembro claramente das
Aventuras de Tom Sawyer, do Lobato
Mark Twain. Em poucos encontrei aventuras tão emocionantes como as do menino Tom. A noite passada na caverna, com Becky Thatcher, me encheram de temor misturado a uma curiosidade incontrolável de seguir lendo para descobrir o que aconteceria com os dois. Sempre fui um menino namorador e talvez tenha sido essa a primeira história de amor que li na vida. Muito tempo mais tarde aprendi a grandeza de Mark Twain para a literatura americana e o significado de sua obra para a língua inglesa.
[Esta é a capa do exemplar que li, qua inda hoje guardo. Não guardei os outros livros, curiosamente e nao achei imagens das capas da epoca em que os li, uma pena.]
Inesquecível também foi O Menino do Dedo Verde, do Lobato Maurice Druon. O pequeno Tistu me apresentou a dimensão da tristeza, da angústia, da reflexão sobre as incongruências da vida. Foi o único titulo infanto-juvenil escrito por Druon, que faleceu recentemente.
Houve os engraçados A Vaca Voadora, da Lobato Edy Lima e O Pequeno Nicolau, do Lobato Renne Goscinny. Quanto não me diverti com essas histórias mirabolantes e cheias de graça.
Depois, teve O Meu Pé de Laranja Lima, do Lobato José Mauro de Vanconcelos. Com o pé de Laranja Lima aprendi o quão solitária poderia ser a infância que eu achava era apenas a minha. Depois desse livro, li outros de Jose Mauro.
Então devorei as aventuras de menino de A Ilha do Tesouro, do Lobato Robert Louis Stevenson, Os Meninos da Rua Paulo, do Lobato Ferenc Molnar e O Gênio do Crime, do Lobato João Carlos Marinho. Todos povoaram minhas fantasias de experimentar grandes peripécias, mas esse último teve direito a algumas releituras ao longo da vida. Por fim, Os Capitães de Areia, do Lobato Jorge Amado me deu outra dimensão do Brasil, da sexualidade, das perdas envolvidas na passagem da infância para a juventude.
Ainda hoje, fico a procura de Lobatos. Autores que renovem meu gosto pela literatura, que tragam o gosto da descoberta e da experiência da novidade. Ainda hoje encontro meus Lobatos aqui e ali e esses não são menos importantes do que aqueles primeiros. Todos eles fazem parte dessa grande construção que é o apreço pela boa literatura, pelos bons autores, pelos bons livros. Todos eles montam e remontam a memória, passada e recente, daquilo que contribuiu para minha formação e permitiu que eu chegasse até aqui.
P.S. Guardo ainda hoje uma imagem de quando histórias só existiam contadas dado o mistério das palavras, indecifráveis para um menino de três ou quatro anos. Ainda no colo da mãe ou da avó, essa imagem me fascinava e pontuou as primeiras histórias que escutei. Essas eram as contracapas dos livrinhos da Coleção Mirim, editados pela editora Ao Livro Técnico nos anos 60. As pequenas figuras flutuando no fundo amarelo eram, então, sinônimo de livro, de história e, quem sabe, de aconchego. Por vezes os Lobatos estão encarnados naqueles que nos ensinam o prazer de ouvir histórias, que mais tarde vai se transformar no prazer de ler.