fevereiro 22, 2009

O ovo cozido

Uma memória da infância me persegue. O ovo cozido no piquenique na represa. Não sei bem quantos anos eu tinha. Quatro? Cinco? Seis? Não me lembro de muitas coisas antes dos meus seis anos, portanto, é bastante provável que isso tenha acontecido por volta dessa idade. Por outro lado, essa memória persiste justamente por causa do ovo cozido, que foi descascado na hora. Eu nunca havia visto isso antes e me parece estranho eu não ter tido essa experiência até os seis anos de idade. Então deve ter sido antes.

Deve ter sido num sábado ou domingo, meu tio Fernando, irmão de minha mãe, passou pra me pegar em casa para me levar a um piquenique na represa. Uma grande represa. Foi a primeira e última vez que fui a essa represa e acredito que hoje não seria uma boa idéia ir até lá, pelo estado de coisas que a cercam. É, o piquenique foi na represa de Guarapiranga. Ou teria sido na Billings?
Meu tio Fernando era um cara legal, companheiro de minha mãe em muitos dos programas infantis que fazíamos na São Paulo dos anos 60 e 70. Lembro-me de sua Belina vermelha, que ele usava pra subir a avenida Morumbi a 120 km por hora, com o carro cheio de crianças. Coisa de maluco, coisa que só poderia ocorrer naqueles anos. Hoje seria algo inimaginável!

Era um cara magro, porém forte. Um cara alegre, brincalhão. Era casado com Helena, uma mulher que aos meus olhos de criança parecia bastante quieta e reservada. Sempre que íamos à sua casa ela estava costurando. Contudo, me lembro de uma história do casal que me deixava intrigado e dá pistas do que poderia ser a relação do casal. Tio Fernando era fumante e fumava no quarto – mais uma coisa de maluco, típica daqueles anos – e tinha um cinzeiro no criado mudo que teimava em sumir dali, apesar de seus pedidos insistentes para que fosse deixado naquele lugar. Um dia, ele resolveu o problema: passou araldite no fundo do cinzeiro e assim ele nunca mais saiu do criado mudo.

Eles tinham 4 filhos, regulando mais ou menos com as idades lá de casa. Lembro que nesse piquenique foram só o casal, a Patrícia, a filha caçula, mais nova do que eu apenas um ano e eu mesmo. Ficamos sob a sombra de uma árvore, nadamos um pouco e tomamos um lanche. Mas só lembro disso tudo por causa do ovo cozido. Era um ovo branco, grande e que foi descascado com todo o cuidado. Raras vezes uma coisa me causou tamanho espanto. O som da casca, o a clara reluzente que surgia por baixo, a textura lisa, o sal polvilhado sobre ele, a primeira mordida que fazia surgir a gema amarela.

Agora, pensando bem, isso deve ter acontecido quando minha irmã caçula nasceu, a Guy. Devem ter me tirado de casa quando minha mãe foi pro hospital ou perto da hora de ir pro hospital. Talvez eu precisasse me distrair um pouco e minha mãe precisasse de um pouco de sossego. Dificilmente eu saberei a resposta para essa dúvida.

Quando mudamos para Campinas, em meados dos anos 70, ele veio trabalhar com meu pai. Morava conosco numa pequena casa de hóspedes que tínhamos na chácara. Naquela época meu pai tinha uma mesa de sinuca espetacular, profissional. Quase todas as noites jogávamos juntos e eu cheguei a jogar de igual pra igual com os adultos.

Nos anos 80 e 90, Tio Fernando experimentou uma vida completamente oposta a que havia tido antes. Separou-se da mulher, os filhos esqueceram dele, o rejeitaram. Ele se casou de novo, teve mais uma filhinha. Separou-se mais uma vez. Minha mãe o encontrou esquecido num corredor de um pequeno prédio na periferia de Sao Paulo, estendido num sofá surrado, encharcado de álcool até a alma. Estava triste. Não era nem sombra daquele cara alegre que conheci quando pequeno. Faltava-lhe vontade de viver.

Resgatado, veio viver em Campinas com minha avó, que o acolheu. Ficou com a mãe por uns 5 anos, relativamente bem. Mas os anos de abandono, de desvalia e infelicidade haviam feito estragos profundos. Não sei em que circunstâncias ele se foi. Acho que depois que minha avó faleceu, ele não quis mais ficar aqui. Foi mais o menos na mesma época em que se aposentou e com o pequeno estipêndio foi reencontrar a filha do segundo casamento, que vivia em Recife. De lá recebemos a notícia de sua morte.

Tio Fernando tinha um espírito de menino. Fazia piadas, ria fácil, fazia travessuras, mesmo depois de maduro e maltratado pela vida. Nunca mais foi o mesmo moleque alegre e feliz, mas ainda era um menino, daqueles em que se vê a amargura no olhar. Tenho certeza que ele foi mal compreendido pelas mulheres com quem escolheu viver na vida. Hoje como pai, custo a compreender como seus filhos tiveram a coragem, a capacidade de abandoná-lo. O fato é que amor de pai e mãe é incondicional, mas de filhos, nem sempre. Esses primos, nunca mais os reencontrei pessoalmente, mas sei que estão todos bem.

Incrível como a memória é um fio que nos conduz a lugares remotos, quase esquecidos e que voltam acompanhados de imagens nebulosas que vão ganhando nitidez enquanto as apalpamos em busca de um passado afetivo. Um passado que nos afeta ainda hoje, pois faz parte do que somos. Hoje pela manhã, na falta de frutas para comer antes de minha corrida, resolvi comer um ovo cozido. E assim, num estalo, me apareceu o ovo cozido da infância!

3 comentários:

Anônimo disse...

adorei este texto...tbem tenho um tio nestas circunstancias e tentei atravez do orkut encontrar os filhos, meus primos. Encontrei e tbem nao me responderam...

As memorias sao partes da alma que levamos junto, para sempre e morando aqui no Canada, ando ate com medo das minhas!!!...a vida fica clara e simples demais e me surpreendo tendo solucoes instantaneas para fatos que aconteceram longe...sera a distancia dos afetos que faz isto??
Marilia ,B.C.

Anônimo disse...

Adorei ler a sua estoria, muito tocante.

Anônimo disse...

ah..... Octavio........