fevereiro 17, 2009

O livro da minha vida: A câmera clara

Tarefa nada fácil escrever sobre o livro da vida. Ou melhor, pode ser muito fácil. O livro da minha vida é esse que estou escrevendo aqui. Sei, até parece! Bom, deixando a modéstia de lado, vamos ao que interessa

Antes de mais nada, é preciso enfrentar a tarefa dificílima de escolher, dentre tantos livros com os quais se cria uma relação intelectualmente afetiva [ou seria uma relação afetivamente intelectual?], aquele que seria “o” livro da vida, o eleito. Eu poderia fazer uma lista dos top 5, ou top 10 ou ainda os 50 livros marcantes da vida.

Foi um exercício interessante mapear mentalmente os livros marcantes da vida, relembrar suas linhas e como minhas histórias se cruzavam com as escritas pelo autor. De fato, descobri que há muito não leio romance e poesias e tenho me concentrado mais na filosofia, que não deixa de ter um sentido de arte ao propor reflexões sobre a vida e inventar conceitos que possam explicá-la.

Então, passei pelos livros de Calvino, o Italo o fantástico autor nascido cubano mas na verdade italiano. Qualquer livro dele poderia ser o livro da vida, especialmente ‘Cidades invisíveis’ ou ‘Amores difíceis’. E lembrei-me de ‘O velho e o mar’ de Hemingway, que tantas vezes reli como se fosse a primeira vez. E retornei ao ‘Tom Sawyer’ de Mark Twain, leitura da primeira juventude. E ao Caio Fernando Abreu dos últimos anos de uma juventude já rebelde. Ainda passar por Machado, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar e tantos outros. E recordei das poesias concretas que foram o inicio de tudo para mim: os irmãos Campos [Haroldo e Augusto], Décio Pignatari e todos os outros. E das poesias de Bandeira e Gullar e Leminski e Pessoa e de Ana Cristina César, descoberta tardiamente, para mim, pouco antes de sua morte que me fez chorar.

A partir daí enveredei pelos ensaios e pelas reflexões filosóficas que me levaram a Octavio Paz e seu ‘O Monogramático’, a Paul Valéry de ‘Variedades’ e ‘Introdução ao método de Leonardo da Vinci’, aos ‘Mil Platôs’ de Deleuze e Guattari, ao Foucault de ‘As palavras e as coisas’ e ainda ao ‘Bartleby, o escrivão’, de Hermann Melville. Sim, a literatura encontra a filosofia por diversos caminhos. Contudo, entre esses e tantos outros, há um especial, por uma serie de circunstâncias. Trata-se de ‘A câmera clara’, de Rolando Barthes. [Barthes nasceu no meso dia que eu!]

Com toda certeza, ‘A câmera clara’ foi o livro a que mais releituras recorri até hoje. É um livro pequeno, de cento e poucas páginas, um pequeno ensaio sobre a fotografia [o titulo em português não traz o subtítulo do original francês: La Chambre Claire: Note sur la photographie]. O exemplar que tenho hoje não é o meu primeiro, comprado em 1987 durante a graduação. Esse que hoje leio e releio foi comprado em 1994, na época em que fazia o mestrado. Já teve que ser encadernado sob pena de perder as páginas todas tão desmilinguido estava. Já não cabem mais notas e observações nos espaços em branco de suas páginas.

Barthes escreveu este ensaio em 1980, logo após a morte de sua mãe, com quem vivia, celibatário, no mínimo, se não homossexual. Entre arrumações do luto, se depara com fotos da mãe que detonam o processo de reflexão sobre a natureza da fotografia. Essa, para mim, é a primeira qualidade do ensaio, o primeiro nó que a ele me prende, é seu detonador, seu gatilho, um fato emocional, emotivo que, não por isso, impede o pensador de tecer suas teias conceituais sobre os fatos e as coisas que o rodeiam. O que me agrada e me admira em Barthes é sua capacidade de pensar sobre as linguagens, todas: a escrita, a pintura, o cinema, a moda, os meios de comunicação, tudo. Nada escapa de seu olhar agudo.

Poderia dizer que o segundo laço que me prende a esse livro é o fato de ter sido o primeiro livro que li que engendra conceitos sobre a imagem. Ele representa uma dupla descoberta: a descoberta da invenção de conceitos e a descoberta da poética da linguagem através da fotografia. [Minha trajetória para chegar às artes visuais, às imagens, foi através da literatura e da poesia concreta. E daí para a semiologia e a semiótica foi um pulo. Quem faz a ponte, nesse percurso, quem me faz ir adiante e mostra o caminho é Barthes]. Por fim, um terceiro motivo é também muito pessoal e, coincidentemente, tem a ver com a morte de meu pai. Em 1994, quando reli o livro com mais maturidade, sua morte era recente.

Há ainda um outro motivo. Foi a partir da câmera clara de Barthes que escrevi meu primeiro artigo. A partir de seus conceitos fundamentais fiz a leitura das fotografias de Oliviero Toscani, então fotografo e publicitário que fazia as polemicas campanhas da Benetton. E assim como Barthes, a partir de seus conceitos, teci minhas reflexões que me levaram a invenção de um novo conceito a partir do conceito original.

Resumidamente, o que Barthes diz é que a essência da fotografia é seu referente, aquilo que estava em frente à câmera no momento da tomada, do disparo da maquina fotográfica. Quando se contempla uma fotografia o que se vê é aquele instante, aquele momento congelado, no passado. A isso ele chama ‘isto-foi’. Isso ele pensa a partir das fotos que encontra de sua mãe, após a sua morte, na sua ausência consumada. Esse movimento, para mim, é belíssimo. Todo o ensaio de Barthes gira em torno disso e é de uma beleza poética, de uma singeleza e singularidade embasbacantes.

Assim, sobre esse conceito, eu, um jovem estudante de mestrado, arrisco criar um conceito que desse conta das fotos de Toscani. Suas fotos escancaravam as feridas da sociedade no final dos anos 80 e inicio dos 90. Apesar de, na pratica, toda foto remeter ao ‘isto-foi’ a partir de um referente num tempo que sempre é passado, as fotos da Benetton apontavam para uma atualidade que não queria sair de nossa frente, constituindo assim um ‘isto-é’. É um artigo pequeno, curto, mas tem um certo vigor na reflexão. Tanto que arrancou elogios do então professor, bastante rigoroso.

Gostaria de colocar um trecho das palavras de Barthes mas escolher uma passagem é igualmente uma tarefa difícil. São tantas belas passagens, são tantas observações estimulantes, são inúmeras as reflexões que extrapolam a fotografia e o luto de sua mãe, apontando para o papel da mediação da linguagem para a compreensao das coisas do mundo. Ainda assim, transcrevo a seguir um pequeno fragmento:

“Ora, na fotografia, o que eu estabeleço não é apenas a ausência de objeto; é também,simultaneamente e na mesma medida, que esse objeto existiu realmente e esteve lá, onde eu o vejo. É aqui que reside a loucura, porque, até este dia, nenhuma representação podia garantir-me o passado da coisa, a não ser através de circuitos. Mas, com a fotografia, a minha certeza é imediata: ninguém no mundo me pode desmentir. A fotografia torna-se então para mim um meio estranho, uma nova forma de alucinação: falsa ao nível da percepção, verdadeira ao nível do tempo. De certo modo, uma alucinação moderada, modesta, partilhada (por um lado ‘não está lá’, por outro, ‘isso existiu realmente’). Imagem louca, tocada pelo real”.
O livro de minha vida é ‘A câmera clara’, pois me fez pensar a vida com outros olhos. Barthes me ensinou a ver e a pensar.

11 comentários:

sonia a. mascaro disse...

Ótimo o seu post! Inumerar os livros marcantes é bem difícil... Vejo que temos muitos livros em comum. A Câmera Clara é um deles. Aqui um trecho que sempre me emociona:

(...) Na Mãe, havia um núcleo radiante, irredutível: minha mãe. Acham que sofro mais porque vivi toda a minha vida com ela; mas minha dor provém de quem ela era; e é porque ela era quem ela era que vivi com ela. À Mãe como Bem, ela acrescentara essa graça de ser uma alma particular. Eu podia dizer, como o Narrador proustiano quando da morte de sua avó: " Eu não me atinha apenas em sofrer, mas em respeitar a originalidade de meu sofrimento"; pois essa originalidade era o reflexo daquilo que havia nela de absolutamente irredutível, e por isso mesmo perdido para sempre de um único golpe. Dizem que o luto, por seu trabalho progressivo, apaga lentamente a dor; eu não podia, não posso acreditar nisso; pois, para mim, o Tempo elimina a emoção da perda (não choro), isso é tudo. Quanto ao resto, tudo permaneceu imóvel. Pois o que eu perdi não é uma Figura (a Mãe), mas um ser; e não um ser, mas uma qualidade (uma alma): não a indispensável, mas a insubstituível. Eu podia viver sem a Mãe (todos vivemos, mais cedo ou mais tarde); mas a vida que me restava seria infalivelmente e até o fim inqualificável (sem qualidade). (p. 112- 113)

Tendo tempo, veja um dos meus livros preferidos no meu blog LEITURAS.

Um abraço.

sonia a. mascaro disse...

Ops! Leia-se Enumerar os livros....

*Renata Gianotto disse...

Oi Octavio!

Cheguei até aqui através da Coletiva. Fiquei curiosa para ler "A Câmara Clara". Aliás, estou curiosa para ler todos os livros que estão indicando, hehe!

Adorei o blog e sua história. Adoro gêmeos em particular. Gostaria muito de passar por uma experiência dessas.

Tudo de bom pra vc e sua família. Com certeza, voltarei mais vezes.

Grande abraço!

Vanessa Anacleto disse...

Rapaz, eu inventei a brincadeira, mas que é difícil falar de um livro só, isso é. Obrigada pela participação na coletiva, eu , em minha retumbante ignorancia jamais tinha ouvido falar em a Camera clara.

Abraço!

Anônimo disse...

Octávio, a Vanessa foi muito feliz ao inventar esta Coletiva. Inteligente, ela nos proporciona conhecer blogues tão interessantes como este seu. Vou colocá-lo nos meus favoritos, com certeza.
São muitos os livros sim, todos nos influenciaram/influenciam nossas vidas.
Um grande abraço.

Isadora disse...

Que delícia de blog!

Soraya Wallau disse...

Oi Octávio, adoro o tema semiologia e semiótica, tenho muito interesse desde qnd fiz o curso de fotografia, qnd entrei em contato com uma brasileira q estava se especializando no assunto na Alemanha e ela me convenceu de q esse assunto era legal!
Então, qnd estiver por aqui vc pode pegar algum dos meus livros emprestados, tenho trazido livros do Brasil toda vez q vou. Se um dia tiver q voltar vou ter um problemão...
Bjão pra vcs e adorei o seu post.

APPedrosa disse...

Gostei de saber sobre a Câmera Clara. Eu adoro fotografias! Parabéns pelos trigêmeos, você deve ser um herói! Eu com uma já corto um dobrado...
Abraços,
Ana Paula

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Ótimo o seu post. Como é que vc tem tempo sendo pai de trigêmeos???
Fiquei curiosa. Olha te enviei um email para fazer uma resenha tb para o meu blog só de livros. Através do link vc poderá visitar o blog O que elas estao lendo.

Desses seus livros citados por você li muitos deles. O velho e o mar, Tom Sawer, Machado, Alencar, Clarice, Calvino...

Mas por mais que se lê, descubro que ainda é pouco.

Um bom dia!!!

Cristiane Marino disse...

Nossa!!!

Adorei seu post. Quanta força de vontade e paixão pelos livros!! sendo pai de trigêmios e com tempo para ler tanto, isso é magnífico. Aplausos de pé para você!

Parabéns.
Abraço

Anônimo disse...

Excelente post. Também tenho paixão por livros. Tendo formação em Letras, gosto de tudo que se relaciona à boa literatura, à semiótica, aos símbolos de uma forma geral. Aliás,
venho acompanhando seu blog já há algum tempo e percebo a variedade nos temas aqui apresentados, além da boa escrita, que é fator essencial para estimular o prazer do interlocutor pela leitura.

Má.