[...continuação]
Nunca vi minha avó reclamando de nada. Quando mudamos pra Campinas, ela quis vir junto. Vendeu suas coisas e veio, sem falar nada. Adaptou-se suavemente, sem alarde, sem reclamações. Refez sua vida, montou seu apartamento, seu dia a dia. Tinha um apartamento confortável e morei com ela quando estudava na faculdade. Meus pais moravam num distrito na zona rural da cidade, para chegar ao campus da universidade levava em torno de hora e meia dentro de dois ônibus, contando a espera por um e outro. Então ganhei um quarto em seu apartamento de viúva no bairro mais central da cidade. E lá fiquei por 2 anos.
A convivência com ela era muito tranqüila. Eu levava minha vida de estudante, saindo cedo e chegando tarde sempre procurando não incomodá-la. Conversávamos muito. Nessa época escrevi pra ela um pequeno livro de poemas sobre meu amor por ela. Ela levava uma vida frugal e de certo modo excêntrica. Dormia tarde, fumava muito, não cozinhava. Não fazia de modo algum o estereotipo da vovozinha, cheinha, doceira, boleira. Nada disso, muito pelo contrário. Adorava um baralho e uma jogatina madrugada a dentro. E não dispensava a companhia de meus amigos e de minhas irmãs. Todos eles a adoravam e batiam altos papos com a vovó.
Minha avó Martha parecia um passarinho. Mas um tipo especial de passarinho. Acho que posso resumir as seis coisas básicas que ela precisava pra a viver.
Cigarro
Vovó era uma fumante inveterada. Fumava muito. E cigarros ruins. Minister, Free, esses venenos. Era coisa de família, sua mãe, Augusta, fumava e mascava fumo, e de um tempo em que o cigarro fazia parte da composição da personalidade, do charme, do toque a mais. Andava com uma bolsinha de cigarros que comportava o maço, o isqueiro e um apagador de cigarros. Nos últimos anos de sua vida, mantinha uma escarradeira ao lado da poltrona onde passava boa parte de seu dia.
Televisão
A televisão ficava ligada o dia todo, até altas horas da madrugada, quando ia dormir. Era viciada em televisão, especialmente nas novelas. Assistia a todas. Ficava tão envolvida com as estórias que chegava a conversar com os personagens. Era comum ouvi-la dizer ‘sua bisca’ pras personagens femininas de quem não gostava.
Tricô
Fazia tricô dia e noite. Trabalhos enormes, complexos. Usava agulhas circulares. Inventava pontos. Junto com a irmã Maria Rosa havia inventado pontos e padrões maravilhosos, quase rendas. Fazia chales, casacos, roupas de bebês muito bonitos. Davam aulas, tinham discípulas. À medida que tricotava, ia assobiando baixinho e, a intervalos regulares, levantava os olhos pra acompanhar as novelas. Fazia as duas coisas juntas, não sei como.
Baralho
Adorava um jogo de cartas. Isso desde os tempos de casada. Sua casa era ponto de encontro de amigos e conhecidos aficionados da jogatina. Naquela época jogavam de tudo, buraco, pif-paf, pôquer. Depois ela ficou só no buraco. Tinha uma memória aguda, sabia todas as cartas saídas do baralho, sabia a mão de cada um na mesa, era um azougue, como ela dizia. Seu maior adversário era meu pai, outro ótimo jogador, brigavam, brincavam, se adoravam, genro e sogra.
Café frio
Com o tempo desenvolveu esse hábito de beber café frio. Fazia café de manhã, tomava uma xícara morna e o resto do dia tomava goles de café frio.
Bis
Em sua casa não faltava Bis, esse chocolate que deve ter mais de meio século de idade, da Lacta. Ela não ia ao mercado comprar comida e sim Bis. Fazia cotação de Bis, perguntava o preço em outras lojas, solicitava que alguém pesquisasse outros preços. Passava o dia praticamente a café frio e Bis.
Ela nos deixou suavemente. Não sofreu muito mas já respirava com dificuldades em seus últimos dias. Enfisema. Depois que morreu fomos arrumar seu apartamento, juntar suas coisas, guardar suas memórias. Procurei pelo livro de poemas, mas não encontrei. Nunca mais o vi. Achamos coisas interessantes, achados quase arqueológicos. Entre tantas coisas, achamos extratos do Banco do Brasil dos anos 60 junto a um belo estoque caixas de Bis.
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6 comentários:
que delícia ler sobre sua avó.E que jeito gostoso que vc a descreveu.Eu já escrevi um post que fala da saudade que fica quando eles partem.E o quanto nossos filhos são felizardos de terem avós e bisavós por perto.
: )
Parabéns pelo texto.Uma delícia de ler!
Beijos
Me deliciei com a sua vózinha, sou a pessoa mais carente de vó q eu conheço, adoto todas as avós do mundo. hahaha.
Bjo bem grande!
Nossa Octavio, que legal esses posts sobre sua avoh. Eu ainda tenho minhas duas avohs vivas. E morro de saudades delas. Antes de vir para os EUA eu ja nao via uma delas fazia uns 7 anos, e a outra nao vejo desde que vim. Elas moram muito longe de onde eu morava no Brasil entao nao era tao facil ve-las quando queria. Hoje muitas vezes me vem na lembranca momentos da minha infancia com elas. Preciso visita-las quando for ao Brasil novamente.
Muito legal esse post viu!
Abraco
Oi Otavio.
Aqui é a Glaucia, esposa do Lúcio. Somos os pais da Manuela, do Caio e da Luisa. MUito legal este post sobre a sua avó. Me fez lembrar da minha avó.
Abs para toda a família.
Muito bom seu post sobre a sua avó. Conseguiu descrever tão bem a personalidade da sua avó Martha, que até parece que ela está aqui ao lado... rs, sim, pois, à medida em que você escalona a descrição, a imaginação vai aumentando.
Muito bom... isso é o que eu chamdo de "fazer o leitor mergulhar na história".
abraços.
Marli.
Amor de vó... eu posso dizer que também sei o significado desta amor. Tive minha vó como uma segunda mãe, e ela era muito parecida com a sua. Também tricotava, adorava um jogo, fumava e era uma mulher extremamente independente e plugada no mundo atual, até que foi pega pelo Mal de Alzheimer. Hoje ela é apenas uma senhora de 85 anos, que já não reconhece nenhum de nós, que vive atrelada a um mundo de lembraças e alucinações, onde não cabe mais ninguém... é muito triste!
Estou lendo e conhecendo seu Blog aos poucos, por isso não estranhe comentários de posts antigos, tá
Beijinhos
Elida
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